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A desordem é uma ordem que não convém

  • Foto do escritor: FiGAS
    FiGAS
  • 16 de set. de 2021
  • 4 min de leitura

Meus pais vieram me visitar na cidadezinha onde moro na Itália, perdida no meio de tantas colinas e vales cobertos de vinhas produzindo uvas com nomes famosos: Barolo, Nebbiolo, Barbera. Paramos para admirar a vista em La Morra, localizada no cume de uma colina com uma linda vista sobre todo o vale. Abaixo, a paisagem parecia uma colcha de retalhos, um cobertor verde com quadradinhos bem delimitados, com risquinhos ora diagonais, ora verticais, ora horizontais. Lindo né? Pois é.


Andrea Mucceli / Jose Alfonso Sierra / Rob Pumphrey


Precisamos falar sobre monocultura. Não quero falar aqui sobre a monocultura na agricultura, apesar de ser de longe o tema mais importante quando falamos sobre comida no Brasil, mas quero falar da cultura da monocultura, a “nossa” cultura que permite que não soe estranho eu falar de “cultura” como se só tivesse uma: a mono cultura. Militarizados desde a primeira infância, aprendemos que as coisas se organizam em linhas, em fileiras, em pirâmides onde naturalmente se instala uma geometria hierárquica que permeia nossa realidade: hierarquia, eficiência, unidade, separação, categorização, ordem e progresso.

Depois do nosso tenso feriado de 7 de setembro, eu gostaria de perguntar: que ordem? Que progresso? Essas coisas necessariamente andam de mãos dadas?

O que é a ordem, o que é o progresso? Precisamos de campos gigantescos com uma só planta clonada milhares de vezes? Isso é o que chamamos de progresso? Centenas de casas, prédios, todas iguais, seguindo o mesmo formato de quadradinhos empilhados, alinhados de maneira simétrica. Quem mora dentro desses quadradinhos? Uma família perfeitamente simétrica, um pai uma mãe, um filho uma filha, todos sorridentes ao redor de um pão branco com margarina feita de soja de monocultura? Os sorrisos são quadradinhos brancos cirurgicamente alinhados, e todos falam português seguindo as regras gramaticais.

Towfiqu Barbhuya

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Por que é tão fácil achar estranho que uma família robótica e monocromática seja uma coisa esquisita, mas não centenas de pães brancos com o mesmo sabor, em um supermercado com o mesmo nome e organização que qualquer outro? Como é possível que no Brasil seja mais fácil reconhecer o sabor de uma maçã (a mesma maçã clonada milhares de vezes por que maçãs de semente não satisfazem as demandas do mercado) que o de uma mangaba, um pequi, um cajá-manga?


A vida não é linear. A vida é uma bagunça. A evolução, que mesmo com esse nome não é necessariamente um processo de “progresso” é um processo essencialmente de bagunça. A segunda lei da termodinâmica diz: as coisas tendem à bagunça. Existimos em uma pluralidade cultural constante, onde mesmo dentro de um pequeno grupo como a família estamos em constante processo de adaptação, mutação, criação.

Rosana Persona / Taylir Siebert / Frank Albrecht


Porém, continuamos nos baseando em imagens inventadas de ordem e linearidade para explicar de maneira simples um mundo infinitamente complexo. Inventamos que é “errado” ser não-heterossexual, que existem dois gêneros dicotômicos, e que é errado não ser daquele gênero que nascemos. Passamos uma vida inteira conversando com milhares de pessoas, aprendendo novas palavras, talvez até criando novas maneiras de expressar todos os conceitos do mundo em sequências específicas de som, mas essas invenções são “erradas” até uma entidade arbitrária decidir que sim, aquela palavra que você usa desde criança é efetivamente uma palavra. Entendemos o que os outros querem expressar, mas pedantemente os corrigimos “não é pobrema, é pro...ble...ma”.

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Maria Bolgiani

Existe alguma percepção que existiria o Português “correto”, seguindo regras ditadas por uma autoridade superior. Você já tentou seguir essas regras? Já se imaginou falando assim no dia a dia? E de alguma maneira, mesmo falando uma língua “errada” mais de 270 milhões de lusófonos conseguem se comunicar. Não obstante, vamos à escola para aprender a escrever, a falar, a pensar da maneira “certa” como se ela existisse. Aprendemos as coisas através de textos onde as frases vêm uma após a outra, as palavras são separadas por um espaço determinado, as linhas vêm uma após a outra em fileirinhas horizontais perfeitas. Parece até uma plantação de soja.


Artur Rutkowski

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Jantamos em restaurantes italianos defendendo que pizza é a de Nápoles, o resto não é nem pizza, que risoto tem que ser feito com arroz arborio, que pesto é feito exclusivamente com a folha jovem do manjericão. Depois de defender essas regras que ordenam uma concepção bem organizadinha de “comida italiana”, você passa mais de 10 minutos na Itália e descobre que cada cidadezinha, cada família tem uma receita diferente, que o que definia as receitas era menos uma ideia de regras gastronômicas, e mais uma maneira de se adaptar a uma bagunçada realidade de escassez de comida. Essas receitas pedem certos ingredientes por que não havia outro ingrediente, era comida de desordem com o que eles encontravam: massa com vagem e batata, sopa de urtiga com cevada, ovo com folha de rabanete.


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Sugiro então que façamos uma pausa na jardinagem de nossas mentes. Que em vez de plantar pensamentos manufaturados pelas Monsanto das ideias, que deixemos que nossas monoculturas virem florestas agroecológicas. Que paremos de podar as ramas selvagens de pensamentos errados que nos vêm no meio da noite, que paremos de arrancar as “ervas daninhas” que competem com nossos frágeis ideais geneticamente selecionados. A monocultura é uma maneira de extrair o máximo rendimento de uma planta para vender em mercados capitalistas, sacrificando a biodiversidade, o solo, e o próprio valor da planta como ingrediente. Se você já provou um tomate plantado em horta, uma manga catada no pé, entende a diferença. Estamos podando nossas mentes para que sejam convenientemente obedientes a mercados que vão nos fazer competir para ver quem é mais barato e conformado?


Certamente algum barão da soja na fronteira da Amazônia sobrevoa seus infinitos campos alinhadinhos e pensa “antes de mim, isso tudo aqui era mato. Limpei isso tudo. ”


Ordem e progresso.

Andrea Muccelli / Monika Grabowska / Charles Deluvio / Marcello Aquino / Rodrigo Flores


*Stefano Nunes é padeiro artesanal, curador no Instagram @anticolonialist.cookbook.


Formado em economia pela Universidade de Paris 1 Panthéon-Sorbonne, mestre em economia do desenvolvimento e políticas públicas e história econômica pela Sciences Po Paris e London School of Economics, mestrando em Gastronomia, Culturas Mundiais de Comida pela Università degli Studi di Scienze Gastronomiche.


Stefano escreve sobre colonialismo e comida para FiGAS.


Acompanhe!

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