O prato do Outro
- Stefano Nunes
- 10 de jun. de 2021
- 4 min de leitura
Atualizado: 21 de ago. de 2021
Quem está olhando para o seu prato? E você? Já olhou para o prato do outro? Já olhou para o seu próprio prato e viu o Outro? Pois bem, para conversar sobre comida, classe, colonialismo e apropriação cultural precisamos antes de mais nada conversar sobre o Outro, com O maiúsculo.

O olhar do Outro pesa sobre nós, especialmente hoje em dia, quando compartilhamos tanto nas redes sociais que o Outro parece ter uma câmera dentro das nossas casas. O Outro julga o que comemos, nossos pratos, nossos talheres, nossas porções, nossas escolhas. Comer em público é um ritual curioso. O Outro nos força a nos vestirmos bem, a nos comportarmos à mesa, a manter as crianças bem calminhas. Quantas outras
coisas não fazemos por medo desse olhar tão fuzilante do Outro? Comemos específicos tipos de carne, pedimos champagne, evitamos pedir certas coisas, enterramos nossos narizes em taças de vinho, mesmo sem saber de onde tiram que tem “notas de avelã”, tudo para executar performances ritualísticas no altar do Outro: performatividades de classe. Comer em público é um ato de profunda coragem.
O olhar do Outro é tão poderoso que ele determina até nossas próprias identidades. O que é “comida brasileira”? Como chegamos a colocar pratos tão vastamente diferentes como tacacá, pamonha, leitão à pururuca, moqueca e acarajé na mesma caixinha semiótica? A princípio não temos uma necessidade de juntar isso em uma gororoba cultural, sabemos muito bem a quais culturas gastronômicas regionais pertencem cada um dos pratos que listei, nem preciso explicitar. Porém, frente ao Outro que nos olha, precisamos justificar pertencimento a uma arbitrária demarcação geográfica que faz que churrasco seja churrasco e parrilla seja parrilla. A construção de um sabor nacional para apresentar ao Outro nos faz servir comidas que estimamos ser “dignas” o suficiente para servir. Quem carrega a bandeira da nossa comida nacional é o bobó de camarão, o churrasco gaúcho de picanha, a feijoada completa. O cuscuz, a tapioca, o arroz e o feijão do PF executivo que você come todos os dias ficam só olhando. Eles sabem que são a real comida típica, mas não comida para o Outro ver.

O que acontece, então, quando nós é que somos o Outro? Quando classificamos coisas como “comida japonesa”, “comida italiana”, “comida chinesa”? Quando detemos o poder de ser o Outro, o poder de determinar o que é visto, o que é digno de ser visto? O que fazemos com essa responsabilidade? Da mesma maneira que quando viajamos a lugares desconhecidos escolhemos as fotos que tiramos, e em seguida as fotos que postamos nas redes sociais, para mostrar aos “nossos” o que achamos de relevante no Outro. Quando categorizamos outras culturas fazemos uma seleção, por que é impossível dar conta ao mesmo tempo da cultura do Outro em sua totalidade e da sua outridão.
Você já se pegou olhando para alguém se deliciando comendo coisas como grilos, cigarras, cavalo, natto, tempeh, tofu fermentado e pensou “ECA que NOJO”. O nojo é seu, tudo bem, você tem direito de sentir nojo. O nojo é também fruto de uma construção cultural, é a manifestação do confronto entre a comida e a outridão. Expressar o nojo --especialmente na frente de quem está se deliciando-- é a própria opressão do Outro. Ao expressar o nojo, o que você está fazendo na verdade é colocando sua visão no centro do que é “normal”. O estrangeiro é estranho, exótico, diferente, outro.
De maneira mais sutil --e perigosa-- quando classificamos Outros e suas comidas em caixinhas muito grandes, como “comida asiática”, isso faz que tenhamos uma ideia fabricada por nós mesmos a partir de uma amostra insignificante sobre o que é “sabor asiático”. Assim, qualquer coisa com shoyu, peixe com coentro, arroz é asiático. Salmão defumado enrolado em cream cheese, empanado e frito é japonês; qualquer comida com uma colherada de gochujang vira coreana, se fosse misô seria japonesa. Macarrão com shoyu é chinês, com tomate é italiano. A identidade do Outro fica pendurada por um fio, esperando que nosso olhar o classifique como o Outro certo. Muitas vezes fazemos isso sem perceber, sem nem nos darmos conta do que estamos fazendo, por que estamos acostumados a estar no centro da nossa visão.
A questão aqui não é sobre se é “certo” ou não colocar abacaxi na pizza, isso é outro texto futuro. A questão fundamental aqui é nossa capacidade de ver as coisas, não como grande Outro opressor, mas como o pequeno outro curioso. Curiosidade significa humildade. A humildade de descer da nossa torre de observação, onde estamos no alto e no centro do que é “normal”, e descer nos mercados, nas ruas, nas cores, nos cheiros e sabores. Principalmente a humildade de saber que nunca vamos conseguir abranger o outro por inteiro. Mal conseguimos abranger a nós mesmos por inteiro. Continuamos olhando “Nós” como o Outro. “Nossa, mas você coloca ketchup na pizza isso é errado”.
Decolonizar nossos pratos é um longo processo de questionamento do nosso lugar como o Outro e do nosso poder de opressão.
Decolonizar é o processo de enxergar o outro não como Outro, mas como outro qualquer, como nós também somos outros.
Stefano Nunes / Maria Teneva / David Clode
*Stefano Nunes é padeiro artesanal, curador no instagram @anticolonialist.cookbook, formado em economia pela Universidade de Paris 1 Panthéon-Sorbonne, mestre em economia do desenvolvimento e políticas públicas e história econômica pela Sciences Po Paris e London School of Economics, mestrando em Gastronomia, Culturas Mundiais de Comida pela Università degli Studi di Scienze Gastronomiche.
Stefano escreve sobre colonialismo e comida para FiGAS.
Acompanhe!
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