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Ode ao bolo feio

  • Foto do escritor: Stefano Nunes
    Stefano Nunes
  • 26 de abr. de 2021
  • 4 min de leitura

Outro dia, estava fazendo café da manhã para amigos e decidi fazer uma shakshuka simples: tomates, ovos frescos e ervas. Coisa de menos. Em algum momento meu amigo bate na testa e fala “Ih! Esqueci de comprar o pão sírio! Pô, pior que acho que o mercado vai fechar em 20 minutos, tenho que sair agora”. Respondi: “Cara, você tem farinha? Por que a gente não faz os pães aqui mesmo? Em dez minutos resolvo isso”. Assim, conseguimos ter pãezinhos frescos, quentinhos e deliciosos, com o doce sabor da banana que demos ao capitalismo industrializante do nosso pão de cada dia.

imagens: Stefano Nunes e Anton

Vocês se lembram em que momento da história simplesmente nos esquecemos de como fazer coisas?

Acho que a maioria de nós tem histórias de brincar ao pé da máquina de costura da avó enquanto uma névoa doce saia do forno e invadia todos os cômodos da casa. Aquele bolo sairia do forno, seria servido com café e quem sabe biscoitos, geleias, doces, vários deles feitos em casa. Nossas memórias afetivas ligadas a essas comidas tendem a apagar potenciais imperfeições, os biscoitos com formatos tortos, os bolos com o fundo um pouco queimado, a calda de brigadeiro levemente cristalizada, isso nunca importou.

imagem: Dor Farber

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Tudo bem, ainda fazemos bolos caseiros, brownies, quem sabe biscoitos, que bom que alguns continuam fazendo comida em casa, mas... remendamos roupas? Tricotamos meias? A cerveja que você toma, você já viu a cara de quem produziu? Orégano, manjericão, tomilho, sálvia, essas palavras evocam plantas em vasos, ou potinhos de vidro cheios de folhas trituradas e secas? Algumas coisas nem sequer pensamos em fazer em casa, como sabão, desinfetante, sorvete.


Não fazemos essas coisas porque demoram, porque não é prático, ou “não é possível fazer em casa”, e “ah, tentei tanto fazer pão, mas nunca ficou lindo igual o da padaria”.

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Vou te contar um segredo: eu sou padeiro, faço pão todos os dias, me enterro na literatura sobre glúten, fermentação, temperatura, culturas, pedras refratárias de forno, temperatura do forno, passo horas tentando resolver mínimos detalhes para acertar meu pão e adivinhe?! Nunca ficou tão bom quanto aquele que eu fazia na padaria. Sabe por quê? Por que minha cozinha não é uma padaria.

Minha cozinha não é uma fábrica de massas nem é uma confeitaria. Mas isso não impede que eu faça essas coisas todas nela. Às vezes elas ficam feias, tronchas, esquisitas; às vezes é difícil lembrar que o que vai ficar é a memória de compartilhar essas coisas com pessoas que amamos, não um comentário infeliz de jurado de reality show.

Se faz urgente pararmos de querer que nossas vidas todas sejam instagramáveis. É importante começar a amar nossos pães que não crescem tanto, nossos bolos que as vezes ficam densos, nossas plantinhas que volta e meia murcham, catar frutas caídas no chão, aquelas com mancha, com bicho, com machucado. Precisamos perder o medo da aventura de tentar coisas novas, parar de nos sentirmos constrangidos por que a receita não deu certo na primeira tentativa.

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Ao mesmo tempo que paramos de saber como fazer sorvete, massa de tapioca, manteiga ou iogurte em casa, gasta-se bilhões de reais em produtos cheios de estabilizantes, corantes, gorduras trans e conservantes, que muitas vezes nem satisfazem os sabores que procuramos.



imagem: Yansi Keim

É tão mais rápido comprar molho de macarrão do que passar 30 segundos cortando alho, e uns 15 minutos refogando tomate? Se for descascar o tomate pode adicionar infinitos 5 minutos a mais.

Parte do processo de decolonização das nossas mesas passa por nossa própria soberania alimentar, domiciliares ou individuais. Pequenos esforços, como os pães no início desse texto, podem nos ajudar a sermos mais independentes de um sistema que nos impõe produtos de qualidade a cada vez inferior e menos nutritivos. Enquanto não soubermos como se fazem coisas em casa, mesmo mal, imperfeitas ou esquisitas, sempre estaremos sujeitos a essa dependência.


Não sugiro que nos tornemos ilhas de autossuficiência, mas que, ao nos desvincular de grandes empresas e indústrias sem rosto, que possamos voltar a ter relações com nossos vizinhos, que possamos oferecer uns tomates da nossa horta de varanda para que em algum outro dia recebamos um pote de geleia. Isso envolve também pequenos negócios locais. Sou suspeito para falar, mas eu mesmo, como padeiro, desejo que todo o mundo faça pão em casa, por que sei que são coisas de natureza diferente. Sempre existirá um lugar para artesãos que fazem um trabalho de qualidade. Eu sei fazer comida em casa, mas mesmo assim saio para jantar. Janto fora com ainda mais satisfação sabendo que o que estou comendo foi feito por um profissional dedicado, cujas paixões muitas vezes de concentram no prato que preparou.


Fazer as coisas mal é fundamental para apreciar quando as coisas são bem-feitas. Apreciar coisas bem-feitas é essencial para reconhecer que os produtos embaladinhos, perfeitinhos, homogêneos e constantes das prateleiras do supermercado só tem sabor de ultraprocessado e monotonia.





*Stefano Nunes é padeiro artesanal, curador no instagram @anticolonialist.cookbook, formado em economia pela Universidade de Paris 1 Panthéon-Sorbonne, mestre em economia do desenvolvimento e políticas públicas e história econômica pela Sciences Po Paris e London School of Economics, mestrando em Gastronomia, Culturas Mundiais de Comida pela Università degli Studi di Scienze Gastronomiche.

Stefano escreve sobre colonialismo e comida para FiGAS.

Acompanhe!

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