Ana Rita Dantas Suassuna & Perguntas à mesa
- Perguntas à Mesa
- 21 de abr. de 2021
- 6 min de leitura
Perguntas à mesa convida Ana Rita Dantas Suassuna.
Ana Rita Dantas Suassuna tem histórias doces para nos contar sobre a culinária sertaneja, nos faz viajar por cadernos de receitas e registros históricos. Nos deixa com vontade de ler, comer, estudar e entender mais sobre os interiores do Brasil profundo.
Tive o prazer imenso de conversar com ela ao telefone, prosear um pouco sobre gastronomia e ela me ensinou muitas coisas do tanto que vivenciou.
Sua primeira fala foi sobre a última ceia, me perguntou, “você já parou para pensar porque Jesus escolheu logo uma refeição, onde todos estão à mesa para dar suas últimas palavras? Poderia ser em qualquer lugar, em cima de um morro, no campo, mas ele optou por estar com os apóstolos na sua última refeição.”
Comida agrega, alimenta corpo e memórias. É ato simbólico da humanidade. Cozinhar é ação cultural e une quem fomos, quem seremos, o que produzimos e projetamos para o futuro.
Ela me contou também sobre o milho e sua essencial presença nas festividades juninas no nordeste e em especial no semiárido nordestino. O milho precisa de chuva e quando a chuva vinha, em meados de março, podia-se cultivar o cereal e colher em junho. Para celebrar a colheita, agradecem com as festividades a São João, São Pedro e Santo Antônio tradição que herdamos dos europeus, mas que a gente faz do nosso jeito com muita canjica, bolo de milho, milho verde assado ou cozido e outras delícias em que esse ingrediente versátil é capaz de se transformar. Comida é o meio ambiente, eles estão interconectados, e faz todo sentido, não é?
Outro ensinamento que Ana me repassou foi que toda receita deve ser contextualizada seja culturalmente, historicamente, religiosamente ou ambientalmente. Todos esses fatores interferem diretamente nas nossas refeições e precisamos resgatar nossa ancestralidade e perpetuar uma mesa Brasileira de fato.
Convido vocês a apreciarem essa conversa que tem gosto de sequilho de goma e café coado.

1. Qual é a importância da pesquisa culinária regional brasileira?
As regiões geográficas têm na sua flora e fauna alimentos peculiares. Alguns trazem em si forte carga de tradição nos sabores e na forma de prepará-los; muitos outros ainda são desconhecidos sob o ponto de vista de seu potencial alimentar humano.
A pesquisa culinária regional retrata esses ambientes, identifica o que é novo, o que é usual e pode ser modificado, além de recuperar informações que podem estar se apagando no tempo por falta de registros. É importante porque abre horizontes para a inserção de novos produtos na cadeia alimentar ou para introduzir modificações que maximizem o uso dos já conhecidos. Possibilita que para uns e outros sejam criadas e desenvolvidas técnicas apropriadas para a elaboração de receitas que tenham emprego adequado na alimentação humana.
A disseminação dos resultados dessas pesquisas traz, além do conhecimento de novos produtos para uso alimentar, maior valorização dos já existentes no local. Isso proporciona à população possibilidades não só de poder usufruir de uma alimentação mais saudável, como acarreta, simultaneamente, maior proteção ao meio ambiente e novas perspectivas econômicas e sociais.
2. Como foi o seu processo de escrita e resgate de receitas para o livro: Gastronomia Sertaneja - Receitas que contam histórias?

Em julho de 2007 um dos meus filhos reuniu em São Paulo um grupo de renomados e premiados Chefs que se dedicava à valorização da gastronomia brasileira. Incumbiu-me de preparar para eles um jantar degustação de variados pratos doces e salgados, típicos do Sertão, e explanasse sobre a singularidade de alguns preparos.
Terminada a degustação, com bate-papo de cinco horas, o grupo concluiu que havia falta ou insuficiência de registros sobre essa parte da cozinha regional do Nordeste.
Como decorrência dessa constatação, os participantes – Alex Atala, Ana Luiza Trajano, Mara Salles, Maria Luiza Ctenas, Rodrigo Oliveira – instigaram-me a documentar em livro, além do cardápio servido, a contextualização que fez parte da nossa explanação.
Aceitei o desafio que completou o da ousadia que foi me expor para cozinhar, como amadora, para esse seleto grupo de Chefs. Vislumbrei que através da diversidade e qualidade de sua comida o Sertão poderia se tornar mais conhecido e, dessa forma, ficaria também menos vulnerável aos preconceitos existentes por conta de sua condição regional.
Elegi a Fazenda São Pedro em São José do Egito/PE, onde aprendi a cozinhar e viver intensamente o Sertão, como referência para estudar e registrar o que seria de interesse para um livro sobre a cozinha sertaneja até os anos 1950.
Busquei a revisão bibliográfica nos autores nordestinos Câmara Cascudo, Gilberto Freire, Rachel de Queiroz, Josué de Castro, Mauro Mota, Mário Souto Maior, Osvaldo Lamartine de Faria, João Morais de Souza e Nelson Chaves.
Consultei antigos cadernos de receitas, mas o peso maior na qualidade do trabalho foram os depoimentos informais de pessoas familiarizadas com o antigo fazer culinário da região e a recuperação e testes de receitas, com a ajuda de pessoas da família.

3. Para você, qual é a melhor memória de infância que envolva a culinária e que te dê até água na boca?
São inúmeras, com destaque para três delas:
- bife de molho - preparado pela minha mãe com ‘carne verde’ (como era chamada a carne fresca) e servido com um molho grosso à base de nata de leite cru e temperos frescos;
- sequilho de goma – biscoito crocante que se dissolvia rapidamente na boca; de baixo custo, era feito com frequência nas famílias e as crianças, em geral, participavam do recorte da massa, com uso de carretilhas;
- farofa de queijo de manteiga – preparada no próprio tacho em que o queijo foi feito; com uso de uma legra raspava-se o fundo do tacho para soltar o cascão e a ele juntava-se a farinha de roça (assim conhecida na época, a farinha de mandioca) que era umedecida com a manteiga que ficava impregnada no fundo e laterais do tacho. Para obter um sabor doce, adicionava-se a essa preparação um pouco de açúcar ou rapadura.

4. Qual é o aroma da sua cozinha?
A comida tem muita coisa em comum com as pessoas: tem nome, nacionalidade, cor, enfeita-se segundo a ocasião, migra, expõe-se a frio e calor, gosta de festa, é agregadora e indispensável companhia e gosta de estar perfumada!
O do coentro verde sempre me foi o mais agradável aroma na cozinha do cotidiano familiar. Muito versátil e exige sensibilidade e maestria para uso correto e evitar que seu forte perfume domine o sabor na preparação dos pratos.
Guardo na memória olfativa o aroma mais acentuado que havia na antiga cozinha sertaneja: o do café no momento da torra manual que era feita em ‘caco de barro’ e uso de grão cru.
5. Pandemia e cozinha. O que mais cozinhou em tempos de confinamento?
Faz muito tempo que não assumo nenhuma atividade na cozinha de casa. Tenho me limitado a preparar o que vou servir como degustação em ocasião de palestras.
Nesse período de confinamento por duas vezes preparei para almoço doméstico um mugunzá (canjica) com mão de vaca (mocotó) e linguiça defumada, prato bem típico do Sertão e muito apreciado pela família.

6. A sua “sertaneidade”, além das raízes, vem de onde já que está há tanto tempo residindo em Brasília?
Guimarães Rosa já ensinou: “o sertão é o mundo!” Onde quer que passe a viver, o sertanejo mantém sua simplicidade característica e capacidade de adaptação, não perde a coragem para os embates, nem o jeito próprio de falar, de contar histórias, de se alimentar, independente do tempo de residência fora de suas raízes. Essas características é que fazem do sertanejo um cidadão do mundo!
7. Como se sente sendo apelidada de “a dama da gastronomia sertaneja’’?
Quando do lançamento do meu livro Gastronomia Sertaneja – Receitas que contam histórias na XX Bienal Internacional do Livro em São Paulo, em 2010, fizemos no espaço Cozinhando com Palavras uma explanação sobre o conteúdo do livro, com degustação de variados pratos da cozinha sertaneja. O público era pouco familiarizado com essa comida o que ensejou muitos questionamentos e provocou interesse em jornalistas que acompanhavam o evento.
Acabado o debate fui procurada pela jornalista Guta Chaves para uma entrevista. Na matéria publicada vi que estava apelidada de “Dama da Cozinha Sertaneja”, numa forma carinhosa e jocosa que ela encontrou para me identificar com a comida do Sertão.
Aceitei de bom grado porque sinto muito orgulho de, com isso, poder ajudar o Sertão a ser mais conhecido e respeitado Brasil afora.

8. Em sua opinião, qual é o papel do milho na gastronomia do semiárido nordestino?
No Semiárido, desde os primórdios de sua ocupação, o milho é o cereal que se presta a todas as formas de preparo: assado, cozido, torrado e refogado. Compõe cardápios para qualquer das refeições, em sabores doces ou salgados, como ingrediente principal ou como acompanhamento.
As comidas que usam o milho no seu preparo têm reconhecido valor nutritivo e são de custo acessível a diferentes camadas sociais.
*Nascida em Taperoá, sertão Paraibano, é licenciada em Línguas Neo Latinas pela Universidade do Recife e especialista em educação pela Universidade Católica de Pernambuco. Dedicou-se à área de educação exercendo sua função por longo tempo no Ministério da Educação em Brasília Destaca-se também como autora do livro Gastronomia Sertaneja: Receitas que contam Histórias e é uma defensora da comida legitimamente brasileira . Também colaborou em outras publicações sobre gastronomia.
Imagens: Edu Lopes / Lucas Suassuna Batista / Mathew Henry (Unsplash) / Ayaneshu Bhardwaj (Unsplash) / Sandro Gonzalez (Unsplash)
É sempre um prazer ler o que Ana Rita diz. O vasto conhecimento sobre os mais diversos assuntos permite uma correlação ambiental e sentimental desde a primeira papinha até a Ultima Ceia.
Em todas as situações, põe a comida sertaneja no devido lugar, com a pompa que merece.
Maravilhosa entrevista que faz renascer, em nós, a brasilidade que anda meio esquecida.
Que conversa boa! Fluida, simples e agradável. Lindo o nosso sertão! E continuo me devendo o livro de dona Ana...
Chorei de tanta emoção.