O afeto predileto
- FiGAS

- 27 de ago. de 2021
- 7 min de leitura
a·fe·to / sm
1 Sentimento de afeição ou inclinação por alguém; amizade, paixão, simpatia.
2 Ligação carinhosa em relação a alguém ou a algo; querença.
Afeto é bom demais! Essa conexão carinhosa e essencial na convivência humana. Tão importante espalhar afetos por aí para que as dores possam ser melhor suportadas. Afetos são doados, e não impostos. Afetos são laços criados ao longo do viver, aquele fio de memória que nos leva longe de repente, um som, um cheiro, um alguém. Afeto e carinho são combustíveis desse nosso viver.
E já há alguns anos eu venho refletindo sobre o termo “comida afetiva”. Lá no instagram eu soltei o tema, a partir de um textinho que fiz em 2019 sobre o assunto.
Cheguei a escrever outro texto que ficou ali em escanteio, e segui refletindo sobre como o afeto vem sendo tratado na cozinha e em nomenclaturas por aí.
Eis que dia desses, duas pessoas ótimas do pensar comida – Guilherme Lobão e Cyntia Ashiuchi - trouxeram o assunto à tona, e trocamos um pouco de palavras, e me senti impulsionada a recordar o texto que foi deixado de lado, e falar um pouco mais!
Mas gostaria de começar por outro lado da questão!
Como sentimos sabor? A resposta a essa pergunta movimenta pesquisas e teorias há décadas, e hoje podemos contar com um bom repertório científico para entender um pouco mais o quão incrível é o ato de comer.
Comer envolve todos os sentidos. É uma ação multissensorial, que desperta sensações e guarda memórias. Tudo começa no nariz – já li que pode ser na audição, se o chiado do refogado chegar antes de seu cheiro – mas ali rondando no ar, se inicia a aventura.

O olfato tem duas vias, ortonasal que é pelo nariz e retronasal pela boca. Quer entender melhor? Pensa quando você pega uma gripe e não sente o gosto das coisas. Para ir além tem um teste legal: Pegue uma ameixa seca ou bala de goma colorida, depois tape beeemm o nariz, não deixa entrar ar nenhum! Coloque a comida na boca e mastigue (continue segurando o nariz) e então, enquanto mastiga e sente a textura, solte o nariz respirando bem! Você vai sentir todo o sabor invadindo sua boca! Sem o nariz, não tem sabor.
Cheirinho bom na área, surge a pergunta: o que está sendo preparado? E ao ouvir a resposta, seu cérebro recebe a mensagem, codifica e seu corpo se prepara para receber aquilo que o ouvido escutou. Alguns estudos mostraram maior ativação cerebral ao se ouvir o nome da comida favorita do que ao efetivamente comê-la!
Agora você já sabe o que vem por aí, sua expectativa está presente, é a vez de mirar esse prato! Ao olhar o que ouvido e nariz já sabem, a mensagem fica clara e não há surpresas, você sabe exatamente o que irá parar em seu estômago.

O tato à flor da pele, sentindo desde os talheres à temperatura do alimento, e aí vem ele, pronto para o gol! Paladar. O sabor do que você já sentiu, ouviu e viu vai de encontro à sua boca! Retronasal em pleno vapor pronto para, junto com as papilas gustativas, contar ao cérebro que gosto tem essa comida boa aí!
E numa imensa velocidade, nos nutrimos. Levamos ao corpo o que ele precisa para seguir em frente, nos proporcionando novas experiências e criando memórias que nos tornam pessoas únicas.
Eu acho bonito demais o tanto que comer demanda da gente! Ainda bem que tem um tanto de gente estudiosa por aí que acha o mesmo, e eles contam em seus livros! Charles Spence, em seu “Gastrophysics” diz: “O que provamos é profundamente influenciado pelo que vemos. Da mesma forma, nossa percepção de aroma e sabor também é afetada tanto pelo matiz quanto pela intensidade, ou saturação, da cor da comida e bebida que consumimos”.
Em “Neurogastronomy” Gordon Sheperd cita um famoso teste do vinho, em que estudantes de gastronomia e sommellerie experimentavam vinhos às cegas. Em determinado momento do estudo, tingiram de vermelho vinhos brancos, e os estudantes então juraram que era vinho tinto o mesmo vinho branco que outrora avaliaram.
No livro “Neurociência para leigos”, tem bastante explicação interessante, olha só:
“O olfato surge de moléculas do mundo ligando-se a tipos específicos de receptores, seguido pelo cérebro analisando o resultado. Cada um dos aproximadamente 1.000 receptores olfativos diferentes responde a muitos odores diferentes, e cada odor se liga a um subconjunto um tanto diferente desses receptores. Dessa maneira, cada odor tem uma única assinatura de atividade no receptor” podemos dizer que cheiros tem assinaturas no cérebro e que comidas podem possuir mais de 100 assinaturas de uma só vez, e o cérebro trabalha rapidinho para concluir do que se trata.
“Um aspecto do olfato que o diferencia dos outros sentidos é que frequentemente ele gera intrinsecamente uma resposta emocional”.
“A aversão aprendida ao cheiro envolve projeções para a amigdala e o hipocampo, que são as principais estruturas de organização de memória no cérebro”.
“Aprendemos pela experiência culinária a descobrir muitos alimentos bem palatáveis dos quais inicialmente não gostávamos. Ou a evitar certos alimentos, após uma experiência ruim".
“O circuito cortical, junto da amigdala, permite que você associe a visão, o cheiro e o gosto de alimentos bem específicos com sua experiência antes e depois de ingeri-los. Suas experiências com alimentos programam, então, suas preferências e vários disparos para a fome ao ver ou cheirar alimentos”.
Bom, e memória hein? Mais e mais estudos sobre ela. Muito já se sabe, tanto ainda a se aprender. Vou ficar no básico, dizer que ela molda parte de nossa personalidade, e quando se une a genética nos faz quem somos.

Comida e memória andam juntas – e não estou ainda voltando à cozinha afetiva não. Lembra quando você comeu algo que te fez passar muito mal um tempo atrás? Eu por exemplo não tomo vodca desde os 19 anos. De jeito nenhum. Mesmo sabendo que as chances do episódio ruim da juventude se repetir é próxima de zero, eu não quero experimentar. Cada momento que vivemos é possível de virar memória –
– e a combinação de tudo isso vai criando nossa história, e vamos vivendo e criando lembranças, e aprendendo e tomando decisões baseadas no que já sentimos.
Em “Como aprendemos a comer”, Bee Wilson levanta questões importantes sobre alimentação infantil e traz dados de como já foi e como é. Ela conta sobre a tradição do arroz doce nas escolas britânicas, que em muitas dela, era uma comida insossa e ruim, e como a memória desta comida afetou os adultos que a comiam “Os pais que cresceram aturando arroz-doce não iriam submeter sua prole a isso. Os produtos alimentares para crianças foram projetados para serem tão divertidos quanto brinquedos”.
Uma geração que foi obrigada a comer o que os adultos dispensavam, comidas sem graça e sem cor, ao se tornarem pais, desejaram que suas crianças pudessem abocanhar tudo de doce e salgado e gorduroso e colorido pela frente.
Comer é ação de sensações que evocam memórias.
E toda comida tem afeto? Arroz com feijão é sempre afetivo ao brasileiro? Talvez. É tradição cultural, mas nem toda pessoa nascida e criada no Brasil sente apego emocional pela dupla. O feijão de minha avó era o melhor do mundo? Do MEU mundinho sim, afinal ela era minha avó e as memórias que evoco estão conectadas às experiências que vivi enquanto sua neta.

Memórias são criadas a partir de experiências e, para que se compartilhe essa memória, outros devem ter vivido a mesma experiência, daí a questão cultural entra tão fortemente.
Comidas e seus cheiros e temperos específicos regionais, terão sentido para as pessoas da região ou que já visitaram o local. Barulho de panela de pressão às 10:30 da manhã é comum para muita gente no Brasil, e meio sem sentido a uma pessoa polonesa que por aqui nunca pisou.
Se temos cerca de 1.000 tipos de receptores olfativos que respondem a odores do mundo e ativam o sistema nervoso, mas não temos nem 1/3 de palavras para defini-los, como nomear corretamente o que sentimos?
Buscamos referências, memórias, afetos, desafetos, o que já sentimos e que ainda nem temos ideia do que é.
Você conhece algum barista? Esses incríveis profissionais do café estão com frequência realizando calibragem sensorial, que - posto de modo simplório - é trabalhar os aromas e seus nomes para criarem memória e referências futuras na identificação dos aromas do café. Pessoal do vinho, mesma coisa. Já teve a oportunidade ver a roda de aromas do café ou do vinho? Olha só que interessante:
Tá, mas então, vamos falar da ‘birra’ com o termo cozinha afetiva. O problema principal reside na banalização do termo, o uso romântico e exagerado, como se fosse um genérico para toda e qualquer comida, e que acaba na realidade deixando sem sentido algum quando entendemos que afetos e memórias são particulares e ‘afetiva’ não é uma classificação gastronômica.
Vem cá, e as 19 milhões de pessoas passando fome no país neste momento? Que afetos elas encontram em sua comida, muitas vezes não aquecida já que o preço do gás está impraticável para tantas e tantas famílias? Quem come ‘o que dá’ tem a oportunidade do afeto?

Uma outra reflexão: você se lembra do sítio do pica-pau amarelo? Em 1940 foi lançada a primeira edição do livro “Receitas de Dona Benta”. Agora me conta uma coisa: se quem cozinhava era Tia Anastácia, como que o livro era estampado com Dona Benta na capa? E aí surge esse conceito ‘comida de vó’, e ali está uma gentil e sempre sorridente e amorosa senhora cheia de crianças com doces na mão, pratos abundantes de comidas incríveis ‘com gosto de infância feliz’.
Para além do racismo, esse conceito romântico esconde também o fato que a imensa maioria das mulheres não tinha escolha que não estar ali na cozinha, e que a vida delas - muitas vezes ao lado de homens altamente abusadores - era restrita ao núcleo familiar e seus cuidados. Uma vida de poucos afetos.
E por que tudo isso importa? As palavras que usamos importam. Linguagem é parte essencial da existência humana, tal qual cozinhar (leia aqui sobre isso). O que dizemos, como dizemos e ao que nos referimos faz toda a diferença para compreender o que nos será entregue, seja uma emoção, uma ação ou comida.
Me chama para um restaurante de ‘comida caseira’ que eu vou com sorriso no rosto comer arroz com feijão, e possivelmente dizer “lembra o da minha avó”, mas por gentileza, não me convide para um estabelecimento de ‘cozinha afetiva’ que eu fico perdida, e nem o arroz com feijão deles (se é que servem) eu vou querer.
Obrigada por acompanhar a FiGAS!
E uma musiquinha para acalmar os corações
Memória explicada divertidamente!





















































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