MULHERES E A COZINHA - parte I
- FiGAS

- 16 de nov. de 2020
- 4 min de leitura
Atualizado: 17 de nov. de 2020
MULHERES E A COZINHA – parte I
Outro dia minha mãe me disse “filha, você fala de tantos livros legais de gastronomia, porque não falar do livro de sua avó? ”
Minha vovó Nair nasceu em 1916, interior de Minas. Casou-se com um primo, teve cinco filhos, ficou viúva aos 38 anos, e a confeitaria que era uma paixão, virou profissão, e nela seguiu por anos, fazendo bolos e doces para as celebrações da cidade, ganhando fama e os corações de quem comia seus quitutes. O meu, inclusive.
Minha vovó Leonor nasceu em 1912, era professora de música e educação física e por não ser bem visto na cidade que uma moça (já com 30 anos!) morasse só, ela se casou, teve dois filhos e ensinou até se aposentar. Ainda lembro de seu dedilhar no ar, como se tocasse piano o tempo todo.
Uma avó sempre na cozinha, a outra não me recordo de ver mexer uma panela. Ambas amantes de sobremesa, faziam aniversário coladinho: uma no 20 outra no 22, a que gostava de dormir abraçadinha e a que mesmo distante tinha o olhar penetrante, mulheres que desde cedo entenderam como transitar no mundo dos homens, as duas se foram com 91 anos.

Pensar nelas, me faz pensar em todas as mulheres de hoje e de ontem, em nossa história, os caminhos permeados para que estivéssemos aqui.
Dizem que há algo na passagem de uma avó, que acende uma luz nas netas. No livro “Psicologia social da comida”, Denise Amon conta o caso de uma colega de origem judaica, que nunca tinha prestado muita atenção aos pratos e tradições de sua família, a não ser perceber que durante sua infância o básico de casa não era arroz com feijão, mas arroz com molho de tomate e outras iguarias turcas, e que na iminência da morte da avó ela entendeu que receitas se perderiam, e que ela mesma não sabia cozinhar quase nada daqueles costumes, e isso a fez procurar formas de registrar o que pudesse. Nessa empreitada, aparece a receita de um biscoito que diz 'açúcar ao paladar', e antes de se pensar - ao paladar de quem? - a autora responde
"pressupõe que há um gosto assumido naquela família, que se estenderá às futuras gerações, como sendo 'o único gosto possível', 'o' sabor esperado do biscoito. (...) A comida tem uma dimensão comunicativa".

Em “O calibã e a bruxa” Silvia Federici apresenta com maestria o avanço histórico das posições e imposições femininas nas sociedades ao curso dos últimos séculos, mostrando os comos e os porquês de estarmos onde estamos, e a importância de se buscar mudanças. E não precisamos ir muito longe, 80 anos atrás minha avó não podia morar sozinha, e já era demais que tivesse uma profissão e sustentasse a casa. Enquanto minha outra avó, foi trabalhar por força da viuvez, num trabalho aceito pela sociedade que uma mulher executasse: a cozinha. Se vovó quisesse ter sido ser mecânica ou carteira, dificilmente teria logrado sucesso.
E nesse maluco ano de 2020, ainda é possível ouvir de gente mais maluca ainda, umas besteiras do tipo “lugar e mulher é na cozinha”. Ora, se todo mundo come, todo mundo cozinha. Como disse Chimamanda Ngozi Adichie em “Sejamos todos feministas”,
‘nunca vi sentido em deixar nas mãos de terceiros uma coisa tão crucial como a capacidade de se nutrir’!

Se nutrir. Se nutrir de alimentos, se nutrir de amor, de afeto, de amizade... Nutrir quase sempre é um verbo associado a coisas boas e gostosas.
“Um momentinho só, enquanto eu termino de lavar a mesa com menta fresca. Pronto, vamos usar a louça bonita. Vamos beber o que estávamos reservando para ‘uma ocasião especial’. Sem dúvida, ‘uma ocasião especial’ é qualquer ocasião à qual a alma esteja presente” Este trecho do livro “ciranda das mulheres sábias” de Clarissa Pinkola sempre me lembra minha mãe e minhas avós. Toda louça, comida e bebida boa era reservada para visitas. Muitas vezes a comida se perdia antes das visitas aparecerem, e não importava, contanto que sempre tivesse algo gostoso à mão para receber. E em minha geração já percebo um outro caminho, o caminho da comida boa pra mim, do me permitir, me presentear, me permitir, me nutrir. É como se com a mudança da participação feminina na sociedade, estivéssemos honrando nossas avós que não eram permitidas ter tais liberdades. Não sei, talvez seja coisa da minha cabeça apenas.
O que sei é que enquanto nós mulheres lutamos para firmar nosso lugar onde bem quisermos, a cozinha se amplia para um lugar de participação geral, e segue sendo o cômodo favorito de muita gente, o chão de festas e encontros - pós pandemia, tá gente?! – um espaço de movimento, de trocas e aprendizados, coração da casa e união de sabores. Na cozinha perpetuaremos tradições de família, sejam elas kimchi, arroz com feijão, mijadra, torta de abóbora ou bombom de nozes.

E por que eu não falo do livro de minha avó? Por quê prefiro falar dela, e dela enquanto representação de tantas outras avós e mulheres que, em suas ações cotidianas, em suas formas únicas de levar afeto e conhecimento ao mundo, vão deixando suas marcas em cada nova pessoa que nesse planeta adentra. Não escrevo sobre o livro da minha avó, mas escrevo sobre minhas avós, pois sou elas, nesse entrelaçado genético, fios que tecem a minha personalidade embasada nas vivências delas, trazendo viva na memória que sou o que elas não puderam ser.
“O amor cura. Cura e liberta. Eu uso a palavra amor não como sentimentalismo, mas como uma condição tão forte que pode muito bem ser o que mantém as estrelas em seus lugares no firmamento” Maya Angelou.

Imagens Unplash por:
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O dia que eu pisar em Vancouver, após os abraços, quero bolo de nozes seu! Eu também ainda não ousei tentar os bombons. Que a sorte a nossa nos ter para lembrar dos detalhes.
Os figos que inspiram seu blog eram a fruta preferida da minha avó materna. Filha de libaneses, Lydia, também o meu nome, gostava de comê-los todos os dias, na mão, sem talheres nem prato. Nenhuma coalhada será tão perfeita quanto a dela, e as batatas que fritava aos montes para os netos sempre serão as melhores que já comi. Ela nao fazia bombons, mas pasteizinhos de nozes libaneses. Também inesquecíveis. Parabéns pelo seu texto, e obrigada por me trazer boas lembranças!
Quando minha avó materna faleceu, assumi a tarefa de fazer os doces natalinos da família, até então tarefa dela. Tentamos, meu irmão e eu, dar continuidade à tradição dela de preparar carambolas secas pra família. Passamos 2 dias envolvidos com colher, cortar, cozinhar em calda no tacho de cobre e assar sobre tábuas no forno a lenha. Dois dias de trabalho renderam uma caixinha (uma!) de preciosos pacotinhos de carambola seca. Fizemos uma única vez: ninguém tinha o tempo que avós têm para cuidar de quitutes... Desde que se aposentou, minha mãe - a nova avó - prepara as carambolas secas pra família, sem a calda, usando um desidratador elétrico. Continuo amando carambolas secas!
Fui ali buscar uma caixa de lenços antes de terminar de ler! Pensei aqui comigo mesma que não sei fazer um bombom de nozes. Na verdade não sei fazer bombom nenhum. Mas das nozes aprendi a fazer o bolo, e já me senti o máximo quando deu certo! Como que uma herdeira dessa sabedoria tão boa e gostosa, e que sou privilegiada de me lembrar das suas avós. Que sorte a nossa! ♥️