QUEM COZINHA PARA VOCÊ?
- FiGAS

- 4 de jun. de 2020
- 3 min de leitura
Atualizado: 8 de set. de 2020
Diz o dicionário que autonomia é a capacidade de se autogerir, soberania de si, habilidade de tomar suas próprias decisões. Autonomia alimentar pode ser então designada à pessoa que executa plena e conscientemente as decisões acerca de suas refeições (?). Essas determinações e ações envolvem o cozinhar para si e para aqueles ao seu redor, ou implica escolher que o outro o faça?
A reflexão que gostaria de propor é: quem cozinha para você? Onde tem residido sua autonomia alimentar?
Quando pensamos que somos criaturas únicas e que nosso corpo é o que nos suporta, dia após dia, podemos vislumbrar a nossa potência enquanto seres vivos. Somos. Existimos. Sobrevivemos. E o que nos alimenta, nos move, nos define pode também ajudar ou a adoecer ou a curar.
Os alimentos estão conectados a nosso corpo, remetem a memórias, sentimentos, deleites. Comer é ato cotidiano. Todo dia ingerimos algo para nos movimentarmos, e nesse ato há tanta coisa junta: prazer, alegria, afeto, conforto, quente, frio, calma, aceleração, texturas, aromas, tato, olfato, desgosto, nojinho, novidade, lembranças (boas e ruins), ácido, azedo, doce, salgado, umami e uma infinidade de sensações.
Tanta sensação no ato de comer. E no ato de cozinhar?
Vivemos em uma sociedade habituada à terceirização. Resquícios ainda de uma viva memória do violento tempo da escravidão. Cozinhar o próprio alimento virou - principalmente nas últimas décadas com a moda do ultraprocessado - sinônimo de “baixa categoria”, e vale mais, ao olhar da sociedade, aquele que delega essa função. Cozinhar para os outros, seja profissão ou não, é ato de servidão, e nossa sociedade diz que é chique quem sabe ser servido.
Com o advento dos programas de culinária, essa noção se modificou um pouco, cozinheiros ganharam status de estrela de TV, mas, como disse Michael Pollan em seu excelente livro Cozinhar, as pessoas gastam mais tempo assistindo a programas de culinária que efetivamente cozinhando. O autor diz ainda que:
“atividade de lazer é aquela na qual seria inconcebível pagar para alguém fazê-lo em seu lugar, como, por exemplo, assistir à televisão, ler um livro ou fazer palavras cruzadas. Todo o resto – a parte que o mercado descobriu como fazer por nós – se torna uma espécie de trabalho, aquilo que qualquer pessoa racional terceirizaria assim que pudesse. ”
Passamos a responsabilidade a outros, deixamos nossa autonomia de lado e ficamos reféns de coisas prontas do mercado, de pedidos por telefone e aplicativos e, principalmente, de uma pessoa em nossa casa que cozinhe por nós.

Não se chega a classe média no Brasil sem ter uma pessoa que limpe e cozinhe em sua casa. É um carimbo de status social. E, veja bem, esta reflexão não é sobre contratar alguém ou não, é sobre a questão histórica de onde vem essa necessidade, é sobre como contratamos e tratamos essa pessoa que tem o objetivo de ajudar (e não de servir).
Onde residem as pessoas que cozinham para nós, seja em nossa casa ou nos restaurantes? E qual é a cor da pele delas? Que salário elas recebem? Qual é a distância do cenário atual para o Brasil de 1887?
O racismo é estrutural e nos persegue desde o berço. Não é e nem será mais permitido ou tolerado. Todos os dias devemos nos vigiar para que nossas atitudes sejam contra essa estrutura desoladora, e não a favor.
Quando estiver à mesa, ou junto à sua família ou em solitude, com muitas ou poucas pessoas, pare e reflita, como um ato de atenção plena: de onde vem seu alimento, quem o cozinhou, quem o entregou, quem o colocou na gôndola do mercado, quem o transportou, quem o colheu, quem o plantou?
Que nossas refeições sejam de paz, do solo à mesa.
Imagem: @ jeffsiepman para @unsplash





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